08 junho 2007

A diferença entre comprar e estar… presente



Não fui uma criança de muitos brinquedos, mas fui compensado com mimo, muito mimo mesmo, e de uma intensidade equivalente à vontade de comprar o mundo inteiro para me oferecer…
Nasci em ‘74, e a minha infância sucedeu sob os efeitos do pós-25 Abril, do retorno de África da minha família nuclear, da sua adaptação a um novo sistema, a uma nova vida e a uma nova cidade (Lisboa, onde acabei por nascer) e, logo a seguir, o seu regresso a uma aldeia onde pouco havia… a que se veio juntar os desentendimentos e o (in)evitável divórcio dos meus pais, a consequente(minha) separação da minhã irmã, o meu atropelamento, a prolongada doença do meu avô (verdadeiro pilar da família; verdadeiro pai, para mim), o seu inesperado falecimento e a subsequente viuvez da minha avó (verdadeira mãe, para mim). Tudo isto até aos quatro anos – sensivelmente a idade que a minha filha tem, na actualidade.
Talvez devido a ter crescido em tempo de vacas magras (no que toca a brinquedos e afins), mas, sobretudo, devido ao brusco aumento do actual custo de vida, não sou pai de comprar tudo à minha filha. Mas é uma situação que, ao contrário do que seria de esperar, não me incomoda, pois ela não é, felizmente, criança de pedir tudo o que vê. Para ela, a palavra “presente” parece significar mais do que o último grito dos brinquedos. Obviamente que gosta do Noddy, do Winnie the Pooh ou da Pequena Sereia. Mas, para ela, nada disso é imprescindível; apenas lúdico. O facto de a amiga ou o amigo terem algo, por si só, não a motiva o suficiente para ter igual…
Para ela, “presente” significa mais do que isso: significa pai ou mãe (preferencialmente os dois ao mesmo tempo) estar lá, junto dela, a apoiar as pinturas no livro de colorir, a supervisionar as actividades dos manuais didácticos, a jogar aos pares com as cartas, a fiscalizar a construção do castelo de legos, a vigiar a montagem do puzzle, a decorar a sala com as suas fabulosas aguarelas, a ler uma história «pequenina, papá!»… e outra… e mais outra… a afagar, enfim, docemente, o seu cabelinho macio, ou a massajar suavemente a sua tez de veludo, «mas sem cócegas, papá!», para que consiga relaxar e adormecer. Ou, então, a fazer-lhe consentidas cócegas ou a içá-la com um desajeitado elevador feito de pernas; a fazer por ir buscá-la mais cedo à creche, mas para estar, de facto, com ela; parar para ouvir, com atenção e respeito, as “graves” pequenas coisas que lhe aconteceram, e que, afinal, constituem a maior parte do seu dia-a-dia; e não subjugá-la ao quarto e ao tão útil leitor de DVD ou Canal Panda. É este o significado de “presente” para a minha filha e, se calhar, para tantas outras crianças, em tantas outras famílias. Arriscaria mesmo dizer para todas as crianças do mundo!
Se não posso comprar, não compro. Ela também não insiste muito. Se não posso brincar, chateia-se, chateia-me, chateia-nos, aborrece-se, fica com mau feitio. E não é chantagem, nem sobredosagem de mimo, mas antes frustração e sensação de injustiça; pensará «afinal, o que sou eu? Um bibelot, para não dizer um troféu, para exibires aos teus amigos, familiares ou conhecidos?… que transportas da escola para o quarto, e do quarto para a banheira, e da banheira para a mesa, e da mesa para o quarto, e do quarto para a escola?…»
Enfim, é bem melhor não comprar presentes, mas antes estarmos… presentes. (Como dizia há poucos meses, na SIC, o psicólogo Eduardo Sá, os pais «darem-se, em vez de dar», nem que seja só por uns minutos, todos os dias.) É isso que sinto em momentos tal como o de anteontem, quando a minha filha, enquanto brincávamos, me surpreende com uma carícia na face, com tanto de inesperada quanto de meiga, o que me faz, a seguir, perguntar, com um sorrir desajeitado: «o que foi, filha?». «Nada, papá», responde ela, devolvendo-me um ternurento sorriso: «é que apeteceu-me fazer-te uma festinha!»