14 maio 2007

Por muito que isso nos choque...

Imagem: "Mundo paralelo...", Jorge Guedes
São 80, contei eu, os desapa-
recidos em Portugal, de acordo com o site da Polícia Judiciária (http://www.pj.pt/htm/pessoas.htm). Uns naturalmente mais mediáticos do que outros, dependendo da idade e do estrato social. Mas todos, pelos mais diversos motivos, se ausentaram, voluntariamente ou não, do lar, dos entes queridos, de um passado que foi a única coisa que restou daquela identidade, daquela vida… eternizada num ficheiro policial, reduzida a uma única foto, que faz de cada um, senão mais amado, pelo menos mais conhecido…
Poderemos especular e conjecturar sobre os motivos, que serão vários, sendo os mais vulgares: desespero, demência, rapto… enfim, uma história e um sofrimento inacabados para quem fica, um final (quiçá inesperado) ou um recomeço do zero, para quem vai…
Tenho para mim, e a realidade tem-no demonstrado, que mais fácil é resgatar um desaparecido morto, do que vivo. O ciclo de uma nova vida começa no exacto momento em que se dá, convictamente ou não, a ruptura com um presente, com uma identidade… que acaba, a partir desse momento. Ainda que regresso haja. Nada volta a ser exactamente como antes.
Para quem fica, podemos imaginar o espaço vazio à mesa, a cama feita para sempre e os peluches imóveis por décadas a fio… podemos tentar supor o medo exacerbado e a dependência das memórias, que queremos simultaneamente guardar e expulsar da nossa mente; dos flashes de sorrisos e de olhares a assombrarem-nos o espírito, e a perseguição do que não se disse, ou do que se devia ter evitado dizer; o último abraço, as últimas carícias, a última frase… podemos arriscar até dizer que (para quem sofre com ela), será um mal menor a irremediável perda, comparada com esta infindável angústia…
Podemos até tentar imaginar o desamparo, o horror, a saudade atroz e a solidão abissal de quem foi… Mas, sobretudo, a sua revolta em relação aos que ficam. A revolta por não terem sabido contrariar a sua saída e por não terem sido capazes de o (a) encontrar; e o início da resignação a um novo ciclo que começou; a uma identidade nova que teima em ser sua… e, quando é o caso, a auto-culpabilização por punir tanto quem sabe que espera por si…
De quem fica, a esperança em cada tocar de campainha, a ânsia em cada chamada de telefone, a expectativa a cada carta do correio, a desconfiança perante cada vulto que se aproxima; e o desconforto de cada olhar (ora de pena, ora de suspeição) da vizinhança ou de um transeunte qualquer…
Obviamente, não conseguindo mais do que isso, fiquemos apenas pela tentativa… e pelo desejo de que esse outro ciclo possa, sendo possível, ser (ou ter sido) melhor para todos, incluindo para os que ficam… onde quer que ele se passe… por muito que isso nos choque…
Para nós, fica o exemplo de cada rosto daquela montra de desaparecidos, para que nos acautelemos o mais possível, face a um mundo tão estranho e imprevisível quanto as nossas cabeças…