30 setembro 2005

A inspiradora solidão da sanita

Imagem: "Espera", Acarus Carpool
É inesgotável a inspiração proporcionada por uma daquelas teimosas prisões de ventre - um ritual, quase sempre, senão sempre, solitário e tranquilo.
Não sei se a Ciência terá explicação, mas é, talvez, dos únicos momentos em que o intestino trabalha a par e passo com o cérebro, daí que o óbvio seria as ideias produzidas não resultarem propriamente num livro sagrado ou num programa de governo. Mas não é assim. Uma prisão de ventre tem antes um papel surpreendentemente desinibidor permitindo que a imaginação flua como jamais o álcool ou as drogas conseguiriam! Vá-se lá saber se por causa da “descompressão”, se por causa do silêncio ou até da posição. Bem, é um facto que a célebre estátua “O Pensador”, de Auguste Rodin – símbolo, aliás, da profunda reflexão –, também usa uma posição similar…
Seja como for, independentemente da prisão ser maior ou menor, o que é facto é que cada qual aproveita-a da forma que quer, que sabe ou que pode. Os maníaco-saudosistas usam-na para contar e recontar os mosaicos do chão, qual jogo da macaca, na esperança de encontrar, quiçá, a pedra que marca o quadrado onde se ia. Os mais audazes arriscam e fazem um mortal, saltando da contagem do soalho para a dos azulejos da parede. Os mais precavidos ocupam-se a fazer, cortar, limpar ou pintar as unhas. Os mais informados aproveitam, consoante a classe social, ou para ler os 149 cadernos do "Expresso", ou para saber o resumo das 247 telenovelas em exibição. Os mais artísticos, para trautear ou escrever uma nova melodia, ou para esboçar um novo poema. Os mais filosóficos, para se abstrair e pensar no que a vida é, no que poderia ter sido ou no que poderá vir a ser. Os mais pragmáticos preferem fazer qualquer uma das alternativas anteriores (ou pura e simplesmente se concentram nas contracções), do que ocupar a cabeça com coisas malucas.
Já eu, que pratiquei, ao longo das minhas investidas à casa de banho, qualquer um dos anteriores exercícios de sanita, decidi-me finalmente por um (método, aliás, testado, aprovado e partilhado pela minha filha de 3 anos): a técnica do livro. Ocupo, assim, o meu “tempo de sanita”, a continuar a leitura daquele livro que nem sei bem onde guardei da última vez. Acho que sim, finalmente me estou a tornar numa pessoa culta, literata. Só por isso, venham mais prisões de ventre!

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