06 novembro 2007

Vida de abertura (demasiado) fácil

Imagem: "M. em conserva", Rui Matos (adaptada)
Ando um bocado farto de registos de utilizador e de códigos de acesso, de senhas electrónicas e de palavras-passe; do coleccionismo de cartões magnéticos e de comandos à distância, e de todo o tipo de automatismos de abertura….
Desde a picagem do ponto, à chegada ao trabalho, até à abertura “digital” da porta de entrada, no regresso a casa: um quotidiano de abertura demasiado fácil…
A pouco e pouco, tudo na vida vai sucumbindo à devastação dessas predadoras combinações alfanuméricas, e ficando dependente de um e-mail confirmativo de registo. Literalmente, uma liberdade condicional, esta que estamos a construir…
Quase sem darmos conta, o nosso leque privado de “amigos de café” transforma-se numa infinidade de “comunidades” virtuais de amigos de todo o mundo; positivo, não fossem virtuais… Antigamente, para fazer uma amizade, tínhamos antes de conhecer a pessoa, conviver com ela, perceber se podíamos confiar e, por fim, confiar. Era a ela que fazíamos gosto de mostrar, em primeira mão, as fotos das últimas férias, e só a ela contávamos os segredos mais recônditos, e, ainda assim, muitas vezes ajudados e alentados por uma qualquer bebida desinibidora… hoje em dia, podemos expor, virtualmente ao mundo inteiro, as nossas férias no momento em que estão a acontecer. E o que relatamos “instantaneamente” ou publicamos via web, muitas vezes, nem sequer ao melhor amigo(a) contamos pessoalmente!
Caminhamos, pois, para um novo conceito de amizades: platónicas, intermitentes, fugazes e interesseiras… que se interrompem com o esquecimento das passwords, com a “queda” da net ou avaria do pc; que se perdem se a moderação do chat ou fórum nos bane por incumprimento das regras… ao contrário de um verdadeiro amigo, que sabe sempre perdoar!
O reconhecimento tende a medir-se, pois, não tanto pelo carácter, simpatia e demais atributos de uma pessoa, mas sobretudo pela quantidade de amigos (insisto, virtuais) adicionados.
Os fóruns e os chats temáticos (e, porque não, os blogues!) são, com efeito, uma boa invenção. Mas valem o que valem e devem valer só isso. Quanto a mim, o abissal fosso que o internauta cava em redor de si próprio aumenta à medida que adiciona um novo amigo (ou é adicionado) ou que se regista numa nova sala de chat, num novo fórum de discussão, que publica um novo post; isto (sublinho), caso não haja tempo para fazer e manter as amizades genuínas, de carne e osso, as que se celebram na escola, no trabalho, no bairro ou na terriola onde se vive, ou, porque não (sou levado a admitir), a partir de um primeiro contacto (seguro?) na net... Aquelas cuja “chave de acesso” não expira, por ser intemporal, inata e universal: um abraço, uns beijinhos, um aperto de mão e a troca de um olhar, aquele olhar…
E o que não dizer das saudosas filas de espera (que agora são virtuais!) nas congestionadas repartições de finanças, em (final de) época de entrega do IRS, onde aproveitávamos para coscuvilhar um pouco, reclamar com o vagaroso atendimento, ou trocar lamentações a propósito da sobrecarga de impostos e dos efeitos reais da subida da inflação, designadamente, no respeitante «ao preço a que os legumes estão!» e lamúrias que tais…
À custa de “terabytes” de passwords e e-mails, somos aquele(a) e aquilo que quisermos ser. A Internet constitui a bendita chave-mestra que nos abre as portas a um infinito manancial de possibilidades, ao serviço da nossa vida real. É pacífico. O inverso já não me parece normal nem sensato, antes perigoso, danoso para a integridade humana…
Irremediavelmente, e para meu aborrecimento, esta galopante “doença” vai-se alastrando e o mundo vai-se abrindo, a cada momento, um pouco mais…
Poupem-nos, ao menos, a leve agonia da abertura dos enlatados (tarefa que, mesmo assim, foi em tempos mais árdua)… dá mais luta a quem os come! Quanto ao resto... “abre-te sésamo!”

1 comentário:

Anónimo disse...

Adorei, escreves mesmo bem.
Só pena tenho de não teres puxado a tampa do tesourinho deprimente que a Internet abre. A chave mestra para os teus dados pessoais, as questões da segurança - A VERDADEIRA CAIXA DE PANDORA DO FUTURO. Todos os teus tesourinhos à mostra, manipuláveis... Toda a gente saberá quem tu és e o que fazes, através da cruzamento da informação dos diferentes sítios onde te inscreves na net, dos cartões de crédito, de crashar bases de dados na net.
Quanto mais souberem melhor te poderam manipular. Informação é poder...Mas será?
nobody's safe anymore...

bjinhos